quinta-feira, 23 de agosto de 2012

no dia das frases feitas
a professora de história quer virar um mártir da educação e tira a roupa
fica de calcinha preta em sala de aula
ela grita que nem política nem saúde, nada enlouquece mais a mulher do que o adultério
e explica corajosa, tirando de dentro da boca uma enorme faca afiada, que é tudo muito lógico
na manhã seguinte é primeira capa em todos os jornais, cinquenta anos depois é só uma notinha borrada.


sala de espelho

a alma engole a imagem multiplicadas vezes machucada
a alma e suas pelancas em molho de pus
engole o corpo deforma o corpo deforma a mulher
faces faces infinitamente enfileiradas em quadros claros e estáticos
vivos em carne carne
a mão acaricia os cabelos e puxa um fio com o anel quebrado, partido
pra sempre, as mãos e suas displicentes ações

sábado, 18 de agosto de 2012

de repente me dei conta de que vim parar aqui nesse hoje
e pensei, meus Deus, como?
de repente eu vi que estava sentada teclando sobre isso e me perguntei, por quê?
olhei pro lado e percebi, também de repente, que não tinha você
ué, natural então estar aqui de repente sem você em pleno hoje, um dia tão impensável
não, não!
pois para mim isso que é o agora deveria ser um futuro distante a perder de vista depois da curva da velhice, o tempo saltou até aqui e eu não vi!
foi por isso que você não veio? e me perguntei como foi mesmo que nos separamos, mas não consegui uma resposta. você está em algum tempo longe daqui e eu bem perto de não entender mais nada, como vim parar aqui sem você?

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

o gosto que fica entre o céu da boca e o nariz num gole errado de coca-cola me lembra aqueles fantásticos dias falsos
a memória alojada na garganta
gole cheirado não desce
a prova do absurdo
como a imagem de um lugar tão bonito pode ser arquivada junto aos pesadelos?
a torre de controle no centro do universo onde eu era a força, a luz e a ordem era de açúcar cristalizado, areia, pó
gosto de coca-cola tomada errada
de cocaína
bile
regurgito agora o seu jeito torto de ter me feito o que eu sou quando solta do espelho que eram os seu olhos
meu universo todo em desencanto agora
porque antes dos estilhaços da verdade eu era tão inteira e ridícula
tanto amor e veia aberta
e você, sua cocaína, a mentira e sua lâmina
todos em silenciosa e eficaz conspiração cortaram a minha alegria
sangue coagulado
a mãe joga remédio e o pus amarelado embranquece
seca
carne cauterizada
pregos e cruz
quando o corpo é dor moída em máquina de tortura
cautelosamente
sorrateiramente
como moem os ratos
como roem os ratos
como se parecem com homens em atos selvagens de covardia e horror
a prova do absurdo
jorro em você tudo o que era eu em banhos de lágrima
marco seu lençol com um resto de vaidade pintada
para as suas pisadas de bola
para cada uma delas
uma estaca a mais no coração
no meu
para cada bicho que matei e espectro que encontrei na madrugada
uma chance a mais eu te dei
para você que não sabe o que é
o que passou mas estava lá
para você o que posso deixar é o que restou
é o que eu sou
o que restou dos escombros dos castelos
das memórias, gostos, luzes, ruídos, cheiros e golfos
todo o pouco que sobrou é o que posso te dar
gostos, luzes, ruídos, gemidos, cheiros e devaneios.
a única coisa que não me escapa é a palavra
eu juro que não sei nada de mim
suspenso no tempo
num riacho qualquer meu corpo
ainda vivo
e pálido
roxa, a boca treme e não diz
flutua a alma
a pele mole, morta
o olho aberto
o pulso lento
a caminho dos anos
fluindo numa existência transparente
de peso amparado pela discrição do não ser

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

a vidente
sabe que a vida é uma corrente
e que essa mesma corrente é o que liga tudo o que acontece
a vidente me disse para ficar atenta
ela sabe o quanto é importante ficar atenta e distraída ao mesmo tempo
ao atravessar a rua atenção, repare se alguém parado na esquina pode ser um possível amor
uma amiga importante, distante
repare antes de tudo se você sabe onde está
em que esquina, pois assim é menos difícil se perder
ela disse que se perder demais para além do caminho de volta para casa pode ser perigoso e até mesmo chato, o corpo atento uma hora quer descansar,
e precisa muito mais do que um íntimo desconhecido e seu sofá....