pela passagem de uma grande dor fazemos qualquer coisa, por essa passagem deixamos cair máscaras e certezas, perdemos nosso endereço, mudamos de casa, de casca, digo casa, casca mesmo. atravessando essa rua escura e perigosa podemos cair em buracos sem fim sem nem sentir, podemos nos machucar feio, criar traumas no corpo, feridas profundas, cortes que despedaçam e desfiguram. por esse corredor entre o antes e o depois enquanto ando finco bem meus pés no chão pra não ser vencida pela ventania que se forma nessas zonas de risco. concentro toda a minha força pra continuar, me recuso a olhar pra trás e rever o que na minha memória já está em processo de decomposição. odores da morte, calafrios, desejo de sorte, suor escorrendo pelas pernas e entre os peitos, olhos piscando pra defender a visão pro futuro, silêncio dos berros abafados em travesseiros jogados pelos lados, de todos os lados, ou pra morrer ou pra matar, silenciar, amortecer. afundo bem minha cara num deles e molho o miolo de espuma com a manifestação humana de dor mais conhecida, minhas lágrimas que caem a conta gotas desde o primeiro passo. querida voz do imaginário, me diga por onde sair, me diga que tem uma saída logo alí. por causa de nehuma palavra dita e por causa da solidão eu resolvi por conta própria juntar mais força e correr. nessa de velocidade o túnel que era corredor, que era rua, que foi uma ponte e seria uma passagem de uma grande dor, eu chacoalhei tanto mas tanto que perdi os dentes e as pestanas e fui ficando cansada e fraca, cambaleando, desesperada acabei por raspar o braço direito numa parede cheia de espinhos e perdi um pedaço grande de pele, meu sangue ia fazendo o caminho de volta e até que eu chegasse em algum lugar ele iria parar de escorrer pq foi só o braço. o tempo e o que via ficavam cada vez mais confusos, tortura, muita tontura, não dava pra continuar, era loucura. parei. em volta td ficou mais calmo de repente. o ouvido voltou a reconhecer alguns sons de fora do meu corpo, um barulho de cidade e gente, a perna tremia, aflita engolia o ar que não conseguia respirar, cores tomando formas reais, um sinal verde ficando amarelo, a silhueta de um menino magro e cabeludo, o cheiro do meu suor, tudo me trazendo de volta a uma rua com carros em alta velocidade e luzes como setas que furam o ar poluído do Rio de Janeiro. o relógio da esquina marcava um tempo fixo 23:23, chovia fino, nesse momento ainda não sabia em que ano era essa hora que o relógio marcava. desacelerei a respiração, passei as mão nos dois braços que estavam inteiros, ainda tremia, muito, com a boca seca, seca e cheia de dentes. então mordi os braços, as palmas das mãos suadas. senti o suor então lambi e beijei. estiquei o pescoço pra conseguir ler o endereço, a placa toda metralhada. pensei em perguntar para o primeiro que passasse por mim, mas não soube de que maneira fazê-lo sem que eu parecesse ainda mais louca. que rua é essa? onde estamos? qual o nome dessa rua? vc sabe em que rua estamos? pra onde vamos? calada e sem dar a chance de cruzar olhares, caminhei como os outros, pernas e braços se alternando pra manter o equilíbrio em movimento, concentrada no ar que respirava mais tranquilamente comecei a me lembrar de ter estado ali antes, mas quando meu Deus? mas com quem? até que li algo que me fez algum sentido, mas não a ponto de ser uma pista. escrito na janela de uma van estacionada: III Festival Nacional de Música Instrumental.
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